O enfrentamento da pandemia do Covid19 tem gerado fortíssimos impactos sobre a vida urbana, em função das restrições à aglomeração e circulação das pessoas. Por conta disso, muito se tem falado sobre um novo normal. Mas, a pandemia ainda não passou e ainda vivemos sob restrições. E elas tem exposto velhos e novos desafios para a vida nas cidades. De certo modo, estamos numa encruzilhada, um purgatório, onde podemos fazer escolhas em relação a superar ou não esses desafios.
A intensificação do uso da comunicação virtual com a expansão do home office e das compras via internet, por exemplo, seriam demonstrações do novo normal. As medidas de flexibilização da quarentena na Ásia e Europa seriam outra forma de confirmação. Lá, o retorno de atividades econômicas e escolares, e de uso dos espaços públicos, ocorre com restrições de horários e de quantidades de pessoas. E estas medidas levariam a novos padrões de consumo e relacionamento social.
Entretanto, a cidade é, por definição, aglomeração e circulação de pessoas e coisas. Ela é, em sua gênese, o lugar do encontro, da troca. É o mercado de coisas e das ideias. Um conjunto de estruturas, equipamentos, sistemas e serviços. Um emaranhado de cadeias de valor, cujos elos, muitas vezes servem a mais de uma delas ao mesmo tempo. A cidade é diversidade e mistura de usos. E quanto maior ela é, mais diferenciadas e complexas serão suas funções. E, sobretudo, no caso das cidades brasileiras, assim como tantas da América Latina, África e Ásia, elas são muito desiguais.
O impacto da pandemia e das necessárias medidas de prevenção também são desiguais, a depender das condições de moradia, de acesso à água, ao transporte público, e às tecnologias da informação. O trabalho informal e o desemprego são também agravantes. Comercio, serviços, cultura e turismo, que dependem de aglomeração e circulação de pessoas estão sob pressão maior que outros. Nestes setores, as micro e pequenas empresas têm poucas chances para se adaptar e sobreviver.
Cabe refletir então sobre o quão definitivas seriam as medidas de contenção da pandemia. O quanto elas determinariam mudanças estruturais nas cidades. Teriam elas força para transformar o modo de vida urbano?
Talvez, antes de falar em novo normal, seja necessário analisar os possíveis impactos da epidemia e das medidas de enfrentamento sobre as cidades depois que a pandemia passar.
Um aspecto importante é perceber o momento e as tendências dessa pandemia. Baseado no que apontam a OMS e os cientistas especialistas, até que surja uma vacina acessível para toda população, vamos ter que conviver com a permanência do distanciamento social, em diferentes graus de intensidade, com possíveis momentos de flexibilizações e fechamentos.
A volta da doença em lugares onde o controle parecia ter-se estabelecido confirmam as preocupações e os alertas dos cientistas. E as previsões otimistas apontam prazo de pelo menos seis meses, mais o tempo para que ela chegue a todas as pessoas. Até lá, deveremos conviver com a sombra do vírus e das medidas de prevenção mais ou menos intensa.
Se assim é, o que vivemos, na verdade é um período transitório, até que algum novo normal se estabeleça. Uma espécie de purgatório, onde podemos buscar alguma redenção, ou seguir na tendência de agravar as desigualdades sociais, a degradação ambiental e as (des)economias urbanas.
Nesta fase de purgatório, provocado pela pandemia, problemas latentes foram revelados e exacerbados. Sobretudo nas cidades dos países em desenvolvimento, questões como condições de moradia, saneamento, de transporte público, acesso às tecnologias de informação, mostraram suas fragilidades tanto do ponto de vista sanitário, como social e econômico. Mas, um aspecto fundamental que tem sido demostrado é que estas questões estão integradas. Assim, elas precisam ser compreendidas e, sobretudo, enfrentadas de modo integrado também. Isso requer, pelo menos, que haja uma revisão dos paradigmas atuais.
É necessário, portanto, refletir sobre esse momento no purgatório e buscar extrair lições e possibilidades dos desafios que a pandemia e este período de transição apresentam antes de falar em novos padrões de normalidade. Até porque, seja qual for, um novo normal será, como sempre, resultado de uma construção social que não está dada.
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